Nos últimos anos, um problema grave tem se intensificado no sistema de saúde: a interferência das juntas médicas dos planos de saúde nas decisões dos médicos assistentes. Essa prática, frequentemente motivada por critérios financeiros, ameaça a autonomia médica, coloca em risco a saúde dos pacientes e desafia princípios éticos e legais. Neste artigo, exploramos os impactos dessa interferência e apontamos estratégias jurídicas e práticas que médicos e pacientes podem adotar para combater essas situações.
Por que as Juntas Médicas São um Problema?
As juntas médicas são comitês formados pelos planos de saúde para revisar os tratamentos prescritos pelos médicos assistentes. A ideia, em tese, é garantir que o plano de saúde autorize procedimentos dentro das coberturas contratadas e com eficiência. Porém, na prática, muitas vezes essas juntas priorizam reduzir custos em detrimento do melhor tratamento para o paciente.
Um Caso Real: A Luta de um Paciente por Sua Vida
Em 2017, um paciente diagnosticado com uma doença rara teve o tratamento indicado pelo médico assistente negado pela junta médica de seu plano de saúde. O procedimento sugerido era experimental e de alto custo, mas era a única alternativa viável para melhorar a condição do paciente. A junta negou o tratamento, sugerindo opções menos custosas, mas ineficazes para o quadro clínico. O médico assistente, ciente de sua responsabilidade ética e legal, recorreu à Justiça por meio de um mandado de segurança e conseguiu garantir que o plano de saúde custeasse o tratamento adequado. O caso exemplifica como a interferência das juntas médicas pode atrasar tratamentos cruciais e obrigar médicos e pacientes a buscar respaldo judicial.
Os Impactos da Interferência das Juntas Médicas
- Violação da Autonomia Médica
O Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018) assegura, em seu Art. 7º, que os médicos têm autonomia para determinar o tratamento mais adequado com base no quadro clínico do paciente. Já o Art. 24 proíbe que médicos subordinem suas decisões clínicas a interesses econômicos de terceiros. Quando as juntas médicas alteram ou negam um tratamento, violam diretamente esses princípios. - Risco à Saúde do Paciente
A intervenção das juntas médicas muitas vezes resulta na escolha de tratamentos inadequados ou atrasos no início da terapia. Isso pode levar à piora do quadro clínico do paciente e, em casos graves, até à morte. - Práticas Abusivas
De acordo com o Código de Defesa do Consumidor (CDC), é direito do paciente receber tratamentos adequados e proteção contra práticas abusivas. Negar ou substituir tratamentos indicados pelo médico pode configurar cláusula abusiva, vedada pelo Art. 51 do CDC. - Falta de Responsabilidade Civil das Juntas
Embora as juntas médicas alterem ou neguem tratamentos, elas não assumem qualquer responsabilidade ética ou civil pelos danos causados. Essa falta de accountability é um dos maiores problemas enfrentados pelos médicos assistentes.
Fundamentos Jurídicos e Éticos Contra a Interferência
1. Constituição Federal
O Art. 196 da Constituição assegura que a saúde é direito de todos e dever do Estado. As ações das juntas médicas que limitam ou negam tratamentos infringem esse princípio.
2. Código de Ética Médica
- Art. 7º: Garante ao médico autonomia para decidir o tratamento mais adequado.
- Art. 31: Determina que a autonomia do paciente deve ser respeitada, o que inclui seguir as prescrições médicas acordadas.
- Art. 24: Proíbe que o médico subordine suas decisões a interesses financeiros.
3. Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/1998)
O Art. 12 da lei obriga os planos de saúde a cobrirem os tratamentos indicados pelos médicos assistentes, desde que estejam no rol da ANS ou sejam considerados indispensáveis. A negativa sem justificativa plausível viola essa disposição.
4. Código de Defesa do Consumidor
- Art. 6º: Protege o direito à saúde e à informação adequada.
- Art. 51: Veda cláusulas contratuais que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada.
5. Código Civil
O Art. 186 estabelece que quem causa dano a outrem, por ação ou omissão, deve repará-lo. Assim, tanto as juntas médicas quanto os planos de saúde podem ser responsabilizados por danos causados por negativas ou alterações indevidas nos tratamentos.
Estratégias Jurídicas e Práticas para Combater a Interferência
1. Registre Tudo
Médicos devem documentar no prontuário as prescrições, justificativas técnicas e eventuais interferências da junta médica. Isso serve como prova em ações judiciais.
2. Ação de Obrigação de Fazer
Se o plano de saúde negar o tratamento indicado, o médico pode orientar o paciente a ingressar com uma ação judicial pedindo a liberação do procedimento. O Judiciário, em geral, decide favoravelmente ao paciente, considerando abusivas as negativas baseadas apenas em critérios financeiros.
3. Denúncia aos Conselhos de Medicina
Os médicos podem denunciar a interferência das juntas médicas aos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs), que analisam se houve violação ética.
4. Responsabilidade Civil
Pacientes que sofreram danos em decorrência da negativa ou alteração de tratamento podem processar o plano de saúde por danos materiais e morais, com base no Art. 927 do Código Civil.
Como o Médico Pode Atuar?
- Esclareça o Paciente: Explique ao paciente os motivos técnicos do tratamento indicado e os riscos de não segui-lo. Oriente-o sobre seus direitos legais.
- Busque Suporte Jurídico: Trabalhe com advogados especializados em Direito Médico para elaborar estratégias jurídicas em casos de interferência.
- Denuncie Interferências: Caso a junta médica insista em impor tratamentos inapropriados, registre a situação nos canais éticos e legais competentes.
- Priorize a Ética Médica: Sempre adote decisões clínicas com base no melhor interesse do paciente, independentemente da pressão econômica.
Conclusão: A Saúde Não É Negociável
A interferência das juntas médicas nos dias atuais é uma ameaça séria à autonomia dos médicos e ao direito dos pacientes. Ao priorizar interesses financeiros, planos de saúde colocam em risco vidas e desrespeitam a legislação brasileira. Médicos devem estar atentos às práticas abusivas e buscar respaldo ético e jurídico para proteger seus pacientes e sua profissão.
Casos como o de 2017, em que um tratamento vital foi negado, mostram que é possível combater essa interferência, mas exige ação rápida e assertiva. A luta pela autonomia médica não é apenas uma questão profissional, mas também uma defesa do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
Na prática médica, proteger o paciente deve ser sempre a prioridade. Afinal, a vida e a saúde estão acima de qualquer interesse econômico.
Referências:
- Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018).
- Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/1998).
- Constituição Federal de 1988, Art. 196.
- Código de Defesa do Consumidor, Art. 6º e 51.
- Código Civil, Arts. 186 e 927.
Decisões do STJ sobre negativas abusivas de planos de saúde.