Nos últimos anos, o número de ações judiciais e processos éticos envolvendo médicos aumentou significativamente no Brasil. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cerca de 20 mil ações relacionadas a erros médicos tramitam atualmente nos tribunais brasileiros. Esse crescimento não pode ser visto apenas como um triunfo da justiça, mas como um reflexo de falhas estruturais em nossa cultura médica e no sistema de saúde. Muitos casos poderiam ser evitados com a adoção de práticas preventivas, como o preenchimento adequado de prontuários médicos e a utilização do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Embora muitos médicos vejam essas práticas como burocráticas e desnecessárias, elas não apenas protegem os pacientes, mas também são essenciais para a defesa legal e ética do profissional. Este artigo aborda a importância dessas ferramentas e como elas podem evitar litígios, com base em doutrinas, jurisprudências e dados reais.
Por Que as Ações Contra Médicos Crescem?
Estudos indicam que a principal causa do aumento de processos judiciais e éticos contra médicos está relacionada à falta de comunicação e documentação adequada. Segundo um levantamento da Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (ProTeste), 70% das ações judiciais na área da saúde têm origem em falhas de informação e na ausência de consentimento esclarecido.
Essa realidade evidencia que muitos médicos ainda não compreendem o impacto jurídico da documentação clínica. Um prontuário bem preenchido e o TCLE são elementos-chave para demonstrar a adoção de uma conduta técnica, ética e cuidadosa, sendo, muitas vezes, a única defesa do médico em caso de litígio.
A Evolução do Direito Médico e a Importância do Consentimento Informado
1. O Caso Canterbury vs. Spence (EUA, 1976)
Este caso, ocorrido nos Estados Unidos, foi um divisor de águas para o conceito de consentimento informado. Ele estabeleceu que o médico tem o dever de informar o paciente sobre todos os riscos relevantes de um procedimento, permitindo que o paciente tome decisões conscientes.
No Brasil, esse princípio está amparado no art. 6º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), que garante ao consumidor (paciente) o direito à informação clara e adequada sobre os serviços prestados. Além disso, o Código de Ética Médica, em seu art. 22, reforça que o consentimento informado é um dever ético e legal.
2. O Caso Tarasoff vs. Regents of the University of California (EUA, 1981)
Esse caso emblemático tratou do dever do médico de proteger terceiros de riscos iminentes causados por seus pacientes, mesmo que isso implicasse a quebra do sigilo médico. No Brasil, o art. 73 do Código de Ética Médica prevê que, em situações excepcionais, o médico deve agir para evitar danos a terceiros, preservando o equilíbrio entre o sigilo e a proteção social.
Esses casos internacionais ilustram como a evolução do direito médico tem impactado a prática clínica, impondo aos médicos a obrigação de documentar e justificar suas condutas de forma mais rigorosa.
3. Relatório “Errar é Humano” (1999)
O relatório do Instituto de Medicina dos Estados Unidos, intitulado “Errar é Humano”, trouxe à tona a importância da segurança do paciente e da prevenção de erros médicos. Ele destacou que erros evitáveis são uma das principais causas de morte hospitalar. No Brasil, diretrizes como a Resolução CFM nº 2.217/2018 e os protocolos da ANVISA reforçam a necessidade de documentar todas as etapas do atendimento para minimizar riscos.
A Documentação Médica: Ferramenta Jurídica e de Qualidade Assistencial
Prontuário Médico
O prontuário médico é um documento com valor jurídico, clínico e ético. Ele é essencial para a defesa do médico, como reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que o considera uma das principais provas em casos de litígio.
De acordo com o art. 87 do Código de Ética Médica, o médico é obrigado a registrar no prontuário todas as informações relevantes sobre o paciente, incluindo diagnósticos, condutas adotadas, riscos informados e terapias aplicadas. Além de ser um instrumento de defesa, o prontuário também é uma ferramenta para melhorar a qualidade assistencial, permitindo a continuidade do cuidado com base em informações precisas.
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
O TCLE não é apenas uma formalidade, mas uma exigência legal e ética. Ele assegura que o paciente recebeu todas as informações necessárias sobre o tratamento, incluindo riscos, benefícios e alternativas.
O art. 186 do Código Civil estabelece que aquele que causar dano por ação ou omissão responde por suas consequências. A ausência do TCLE pode ser interpretada como uma falha no dever de informar, gerando responsabilidade civil do médico. Além disso, o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 14, considera a omissão de informações uma prática abusiva, especialmente em serviços de saúde.
A Medicina: Entre a Ciência e a Arte
Muitos médicos argumentam que a burocratização da prática médica limita a relação médico-paciente e reduz o tempo dedicado ao cuidado direto. No entanto, a medicina moderna, como aponta Maria Helena Diniz, é regida pelo princípio da responsabilidade subjetiva, que exige não apenas perícia técnica, mas também prudência e diligência.
A combinação entre ciência e arte na medicina implica que os profissionais devem adotar práticas baseadas em evidências científicas, sem abandonar a empatia e o julgamento clínico. Documentar as condutas médicas e obter o consentimento informado são práticas que não apenas protegem o médico, mas também fortalecem a relação de confiança com o paciente.
Estatísticas e Impactos Práticos
- Crescimento de Ações Judiciais:
Segundo o CNJ, o número de processos relacionados a erros médicos cresceu 140% na última década. Grande parte deles está relacionada à ausência de documentação ou consentimento informado. - Impacto Financeiro:
Estudos da Consultoria Deloitte indicam que a judicialização da saúde custa mais de R$ 15 bilhões por ano às operadoras e profissionais da área. - Casos de Sucesso com Documentação Adequada:
Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) revelou que médicos que adotam práticas preventivas, como prontuários detalhados e TCLE, têm 70% menos chances de enfrentar processos éticos ou judiciais.
Orientações Práticas para os Médicos
- Documente Tudo:
Registre no prontuário todos os detalhes do atendimento, incluindo informações transmitidas ao paciente. - Use o TCLE de Forma Padronizada:
Forneça termos claros, objetivos e adaptados à linguagem do paciente. - Eduque-se Sobre o Direito Médico:
Participe de cursos e seminários sobre ética e legislação médica. - Busque Suporte Jurídico Preventivo:
Trabalhe com advogados especializados para garantir que sua prática esteja em conformidade com as normas legais e éticas.
Conclusão
A crescente judicialização da saúde não é apenas um desafio, mas uma oportunidade para os médicos aprimorarem suas práticas. A documentação adequada e o consentimento informado são ferramentas indispensáveis para garantir a segurança do paciente e a proteção legal do profissional.
Como destaca Giselda Hironaka, “a medicina deve equilibrar o rigor técnico com a empatia, e a documentação é o elo entre esses dois pilares”. A adoção dessas práticas como parte da rotina médica é essencial para reduzir conflitos e fortalecer a confiança na relação médico-paciente. Afinal, na dança delicada entre a medicina e a justiça, a transparência e a responsabilidade são os melhores parceiros.
Referências:
- Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – Relatórios de Judicialização da Saúde.
- Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90).
- Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018).
- Superior Tribunal de Justiça (STJ) – Jurisprudência sobre prontuários médicos.
- Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro.
- Hironaka, Giselda. Direito Médico e Responsabilidade Civil.
- Fiocruz – Estudos sobre judicialização da saúde no Brasil.