Em um momento de extrema vulnerabilidade, quando a saúde está em jogo, o paciente não deveria enfrentar obstáculos colocados por planos de saúde. Contudo, no Brasil, essa é a realidade para muitos que, mesmo diante de diagnósticos graves como câncer, esclerose lateral amiotrófica (ELA) ou a necessidade de cirurgias complexas, são confrontados com negativas de cobertura. Além de colocar vidas em risco, essas recusas afetam diretamente a autonomia médica, essencial para a prática ética e responsável da medicina.
O Dilema dos Pacientes: Negativas de Tratamento e Luta pela Sobrevivência
Casos Reais
- Esclerose Lateral Amiotrófica (2017)
Um homem com diagnóstico de ELA teve o acesso ao medicamento prescrito pelo médico assistente negado pelo plano de saúde, sob a justificativa de que o tratamento não estava listado no rol de procedimentos obrigatórios da ANS. O paciente recorreu ao Judiciário e conseguiu, por meio de liminar, o direito ao tratamento, mas o tempo perdido agravou ainda mais sua condição. - Cirurgia Neurológica em Criança (2018)
Uma criança que precisava de uma cirurgia neurológica urgente teve o procedimento negado pelo plano, que alegou se tratar de um tratamento experimental. A família ingressou com uma ação judicial para obter a cobertura, enfrentando atrasos em uma situação de extrema urgência.
Esses exemplos refletem uma lógica empresarial que prioriza a redução de custos, frequentemente em detrimento das necessidades clínicas e das prescrições dos médicos assistentes.
A Base Jurídica do Direito à Saúde
Constituição Federal
O art. 196 da Constituição Federal estabelece que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, garantindo acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. No entanto, na saúde suplementar, regulamentada pela Lei nº 9.656/1998, os planos de saúde também assumem responsabilidades claras em relação ao fornecimento de tratamentos necessários.
Rol de Procedimentos da ANS
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já consolidou o entendimento de que o rol de procedimentos da ANS é exemplificativo, e não taxativo, ou seja, mesmo que um tratamento não conste no rol, ele pode ser autorizado caso seja considerado essencial e indicado por um médico assistente. Essa interpretação foi consolidada em importantes precedentes judiciais, como o REsp 1.866.316/SP (2022).
Súmulas Importantes para Casos de Saúde
O STJ possui diversas súmulas que consolidam entendimentos sobre os direitos dos pacientes nos contratos de planos de saúde. Elas são ferramentas importantes para reforçar a fundamentação jurídica em casos de negativas de cobertura:
- Súmula 302 do STJ
“É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado.”
Esta súmula é uma proteção contra limites arbitrários de cobertura, garantindo que o paciente não fique desamparado em casos de tratamentos prolongados. - Súmula 469 do STJ
“Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde.”
A súmula reforça a proteção do paciente enquanto consumidor, permitindo a aplicação do CDC em casos de negativas abusivas ou práticas que coloquem o consumidor em desvantagem excessiva. - Súmula 608 do STJ
“Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão.”
Essa súmula esclarece que, em geral, os planos estão sujeitos às regras do CDC, exceto em casos de autogestão, como é o caso de planos de grandes corporações ou entidades sindicais. - Súmula 609 do STJ
“A recusa de cobertura securitária, sob a alegação de doença preexistente, é ilícita se não comprovada a má-fé do segurado.”
Essa súmula é importante em situações onde planos de saúde tentam negar tratamentos alegando que a condição do paciente era anterior à contratação, sem apresentar provas.
A Autonomia Médica em Xeque
A interferência dos planos de saúde não se limita aos pacientes. Ela também afeta diretamente a autonomia médica, direito garantido pelo Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018). Segundo o art. 7º, o médico tem autonomia para decidir o melhor tratamento para o paciente com base em seu julgamento técnico e individualizado.
No entanto, a prática de juntas médicas das operadoras, que muitas vezes negam tratamentos sem sequer avaliar o paciente diretamente, representa uma afronta ao princípio da beneficência, que exige que todas as decisões médicas priorizem o bem-estar do paciente.
Jurisprudência do STJ
O STJ tem reiterado que a negativa de cobertura baseada exclusivamente em critérios administrativos ou financeiros é abusiva. No REsp 1.737.412/SP, o tribunal afirmou que o plano de saúde não pode substituir o parecer do médico assistente por decisões administrativas, pois isso compromete o direito do paciente ao melhor tratamento disponível.
A Batalha Judicial: Tempo e Saúde
Embora muitas decisões judiciais sejam favoráveis aos pacientes, o tempo perdido no trâmite processual pode ser determinante, especialmente em casos graves como câncer, ELA ou cirurgias de urgência. Segundo um relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cerca de 20 mil ações relacionadas a planos de saúde tramitam anualmente no Brasil.
O tempo médio para uma decisão judicial definitiva é de 1 a 2 anos, o que pode inviabilizar a eficácia do tratamento em casos de urgência. Isso torna essencial a atuação do Poder Judiciário em conceder liminares que garantam o início imediato do tratamento enquanto o mérito é julgado.
A Responsabilidade das Operadoras de Saúde
Código de Defesa do Consumidor
O art. 39, V, do CDC proíbe práticas abusivas, incluindo a negativa de cobertura em casos onde o tratamento é indicado como essencial.
Código Civil
O art. 186 do Código Civil estabelece que quem, por ação ou omissão, causa dano a outra pessoa comete ato ilícito e deve repará-lo. Assim, operadoras que negam tratamentos prescritos podem ser responsabilizadas por danos morais e materiais.
Responsabilidade Criminal
Além da responsabilidade civil, as operadoras podem incorrer em responsabilidade criminal, conforme o art. 132 do Código Penal, que trata da exposição da vida ou saúde de outrem a perigo direto e iminente.
Como Pacientes e Médicos Podem se Proteger
- Documentação Médica Detalhada
- Médicos devem registrar no prontuário todas as justificativas técnicas para o tratamento indicado, incluindo os riscos da ausência do procedimento.
- Ações Judiciais e Liminares
- Pacientes devem buscar mandados de segurança em casos de urgência, com base no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, que assegura o acesso à Justiça em caso de lesão ou ameaça a direito.
- Denúncia à ANS
- A Agência Nacional de Saúde Suplementar pode ser acionada para fiscalizar operadoras que adotam práticas abusivas.
- Consultoria Jurídica Preventiva
- Médicos e pacientes devem contar com suporte jurídico especializado em Direito da Saúde para lidar com as negativas de planos de saúde.
Conclusão: Uma Luta que Não Deveria Existir
A negativa de tratamentos por planos de saúde vai além de questões contratuais, representando uma violação ao direito à saúde, garantido pela Constituição. A saúde suplementar deveria facilitar o acesso ao melhor tratamento, mas frequentemente age como um obstáculo.
Embora o Poder Judiciário tenha sido um aliado na defesa dos direitos dos pacientes, o tempo perdido nessa batalha pode custar vidas. É urgente que a ANS intensifique a fiscalização e que as operadoras que adotam práticas abusivas sejam severamente punidas.
A saúde é um direito fundamental, e sua proteção não pode ser subordinada a interesses econômicos. Garantir o cumprimento desse direito é uma luta que não deveria existir, mas que médicos e pacientes continuam a travar diariamente.
Referências:
- Constituição Federal (art. 196).
- Lei nº 9.656/1998 – Planos de Saúde.
- Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990).
- Código Civil (art. 186).
- Código Penal (art. 132).
- Súmulas 302, 469, 608 e 609 do STJ.
- Superior Tribunal de Justiça – REsp 1.866.316/SP e REsp 1.737.412/SP.
- CNJ – Relatórios de Judicialização da Saúde.